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Gordofobia e obesidade: O papel do diálogo na luta contra o preconceito

13 minutos de leitura

Este texto é fruto de uma parceria entre a Supera e a jornalista Néli Simioni, consultora de comunicação com pós-graduação em jornalismo literário e mestrado em divulgação científica e cultural pela Unicamp. Sua dissertação, iniciada em 2019 e aprovada para a turma de 2020, investigou a gordofobia.

Inicialmente, Néli questionava os discursos de aceitação dos corpos gordos, que ganharam força entre 2015 e 2020 impulsionados por movimentos identitários. No entanto, ao iniciar o mestrado em 2020, se deparou com uma nova onda de gordofobia nas redes sociais, intensificada pelos memes que surgiram durante a pandemia da Covid-19.

“O que chamou a atenção nesse movimento todo foi que começaram a surgir discussões sobre o que era gordofobia e o que não era. Então, meu objeto de pesquisa passou a ser: o que pode ser considerado gordofobia? A gordofobia é uma questão individual ou coletiva?

Um pouco mais sobre Néli e a luta contra a gordofobia

Conforme sua pesquisa avançava, Néli sentiu a necessidade de agir ativamente contra a gordofobia. Percebeu que, fora de círculos específicos, o tema ainda dava seus primeiros passos na busca por reconhecimento. Foi nesse cenário que, em 2021, nasceu o podcast Isso não é sobre corpo!—inicialmente criado para uma disciplina do mestrado, mas que ela seguiu produzindo sempre que possível.

Ao concluir o mestrado em 2024, Néli decidiu retomar o podcast com uma estrutura mais sólida e um propósito definido: combater a gordofobia por meio do letramento sobre o tema. Para isso, organizou uma vaquinha para viabilizar a segunda temporada. Além do podcast, sua pesquisa também deu origem ao projeto O Meu Corpo Sou Eu!, ampliando ainda mais o impacto do seu trabalho.

Nesse texto, teremos um relato pessoal sobre a luta contra a gordofobia e a abertura para o entendimento do tema através de uma conversa com Néli.

Vamos lá!

Fonte: Arquivo Pessoal – cedido por Néli

A motivação de Néli para estudar a Gordofobia

O que motivou Néli a estudar o tema foi o impacto da gordofobia em seu dia a dia, uma questão que a atinge cotidianamente. Ela acrescenta: “A gordofobia fez com que eu odiasse meu corpo por muitos anos e achasse que eu era um problema, o que afetou a minha autoestima, porque a gordofobia é uma opressão extremamente naturalizada e internalizada

Eu fui uma criança gorda, uma adolescente que viveu em guerra contra o próprio corpo, que fez muitas dietas, muitos regimes, e então aconteceu o efeito sanfona, o peso ao longo da adolescência não foi estático. Com 18 para 19 anos, depois de viver experiências gordofóbicas, eu pedi aos meus pais para fazer a cirurgia bariátrica. Em 2007 fiz a cirurgia, mas ao longo dos anos percebi que não tinha maturidade necessária para uma escolha desse tamanho. Então, depois que mudei para São Paulo e comecei a viver o reganho de peso, todos os sentimentos de inadequação, de inferioridade, de culpa que experimentei ao longo da vida toda, começaram a voltar muito intensamente.”

Um insight mudou tudo

Néli percebeu que precisava construir uma relação com seu corpo que não fosse medida apenas pela balança ou pelo número da calça. Decidiu buscar acompanhamento psicológico para lidar com a raiva e a tristeza que sentia em relação ao corpo, reconhecendo como isso afeta a autoestima e a vida em sociedade. Começou a buscar equilíbrio entre seus anseios e o corpo. Em 2016, conheceu o trabalho da fotógrafa Maria Ribeiro, que fotografava mulheres com palavras que as representassem. Ela escolheu “plenitude” e participou do ensaio.

O primeiro contato com o assunto: gordofobia!

Eu buscava no feminismo formas de pertencer com o meu corpo, mas ainda não via ser gorda como identidade. Até encontrar o texto Gordofobia, um assunto sério, de Jarid Arraes. Descobrir uma palavra para as opressões que vivi foi uma virada de chave: percebi que havia uma questão social atravessando meu corpo. Durante a pós em jornalismo literário, escrevi o ensaio Gorda e decidi pesquisar a gordofobia. A luta contra ela é coletiva, pois opera estrutural e relacionalmente. Minha pesquisa, Tornar-se gorda, trata de assumir essa identidade como ato político.

Obesidade, sociedade e gordofobia

A obesidade é um tema carregado de estigma social. Na sociedade contemporânea ocidental, corpos gordos são vistos com desprezo e responsabilizados individualmente, ignorando fatores estruturais como acesso à alimentação saudável, desigualdade social e questões genéticas. Esse preconceito, conhecido como gordofobia, se manifesta em diversas esferas—desde o mercado de trabalho até o atendimento médico—e reforça padrões de beleza inatingíveis, muitas vezes promovidos pela mídia. Em vez de abordar a obesidade de forma acolhedora e baseada em ciência, o discurso dominante tende a culpabilizar os indivíduos, dificultando a criação de políticas públicas eficazes e a construção de uma sociedade mais inclusiva.

Como a obesidade é tratada na sociedade atualmente?


Na visão de Néli, a obesidade atua na medicalização do corpo gordo e a partir disso a pessoa gorda pode não ter a escuta e tratamentos garantidos com dignidade quando ela procura acessos à saúde.

“Ativistas dos estudos das corporalidades gordas têm reivindicado que o IMC não seja o único medidor de saúde na vida de uma pessoa. Quando estamos falando de uma pessoa gorda buscando tratamento é preciso considerar os determinantes sociais relacionados a quem é essa pessoa, a própria questão da gordofobia para entendimento mais amplo da queixa da pessoa e também fatores genéticos, biológicos… tudo isso vai ajudar a ter um parâmetro mais completo.

Ela complementa: “Ao magro é dado o direito ao adoecimento e ao tratamento e à pessoa gorda não. Porque dentro do senso comum circula-se esta ideia de que só é gordo quem quer…”

Ter um corpo de determinada forma não é apenas uma escolha; é também biológico. O corpo carrega a identidade de uma pessoa em seu aspecto mais amplo—ele não é maleável como plástico. No entanto, pessoas gordas são frequentemente associadas a estereótipos como o de glutão, preguiçoso ou alguém entregue aos excessos do corpo e da carne. Esses discursos se entrelaçam e moldam o senso comum, influenciando a forma como a obesidade é percebida. Assim, quando uma pessoa gorda busca tratamento, muitas vezes não tem sua escuta garantida, enfrentando preconceitos que dificultam o cuidado adequado.

Fonte: Arquivo Pessoal – cedido por Néli

Como a Mídia e as redes sociais influenciam a questão da obesidade?

Segundo Néli, a medicalização do corpo gordo leva à culpabilização do indivíduo por sua condição de obesidade. São raras as matérias que não são reducionistas, a maioria das matérias segue a linha de que a pessoa gorda precisa emagrecer a qualquer custo e que isso é pela saúde dela.

“O gordo está no imaginário como o preguiçoso, o feio, o fracassado… e é o que ninguém quer ser. Por isso acredito que o movimento do ativismo é muito importante porque precisamos mostrar outros sentidos para e sobre as pessoas gordas. As pessoas gordas não estão necessariamente doentes, as pessoas gordas não são fracassadas, mulheres gordas não são solitárias, preguiçosas, repugnantes… as pessoas gordas estão vivendo, trabalhando, casando, fazendo exercício físico, se divertindo. E o que a gente vê na mídia, nos memes, na internet? Em qual papel as pessoas gordas estão? Ou desesperadamente buscando emagrecimento ou dentro dos estereótipos negativos. É por isso que temos que abrir espaço para as pessoas gordas falarem…

Cada pessoa é única, tem um biotipo, um histórico familiar, hábitos que são delas. Portanto, o entendimento se a pessoa está doente ou não, deve partir da escuta do paciente e não somente de um medidor. 

Sobre os direitos garantidos das pessoas gordas

“A gordofobia age em todos os espaços sociais de forma sistêmica, inclusive no mercado de trabalho. Existem desafios no ambiente de trabalho, que as empresas não estão preparadas. Por exemplo, uma pessoa gorda vai precisar de uma cadeira que a comporte bem, pra ela trabalhar com um bom rendimento. O espaço vai disponibilizar essa cadeira?”

Empresas que têm uniformes: “As empresas têm uniformes para atender todos os corpos?”

Então, quando a pessoa gorda consegue estar inserida no mercado de trabalho, ainda assim terá desafios para enfrentar.

Néli complementa: “É muito comum entre mulheres falarem de emagrecimento o tempo todo, e isso pode ser uma forma de opressão. Temos essa coisa de se sentir gorda. Isso é basicamente uma forma que as mulheres têm de dizer que está se sentindo bem ou bonita... Como é diferenciado quem é gordo e quem é magro? Quem sofre gordofobia e quem não sofre.”

“A gordofobia estrutural… por exemplo, quem vai passar na catraca e quem não vai passar na catraca, quem vai sentar na poltrona do avião e quem não vai sentar, quem vai ser atendido no SUS e quem não vai ser porque não tem maca para seu tamanho e peso. E pra uma pessoa que sofre a gordofobia cotidianamente ouvir mulheres que querem perder 3 quilos, 5 quilos falando delas com essa coisa do se sentir gorda e o autocontrole rigoroso sobre o próprio corpo, como se elas fossem desleixadas por estarem precisando perder 5 quilos e do lado dela tem uma pessoa que está precisando perder 40 quilos de acordo com o IMC pra sair da faixa da obesidade. Você entende o quanto isso pode ser opressor e pode machucar?”

A questão da diversidade em empresas e o assunto obesidade e gordofobia

“A gente fala muito de diversidade hoje em empresas, mas a gente não percebe o outro. A gente às vezes fala muito sobre isso, quer fazer coisas novas, mas a gente sequer tem noção de como é o ambiente onde a gente trabalha. Qual a diversidade que está aqui à minha volta? O que eu preciso oferecer a essas pessoas, quais são as queixas dessas pessoas? E pode ter certeza que vai ter uma pessoa gorda que não foi ouvida ou nem sequer tenha sido vista.”

Como construir espaços mais inclusivos e com representatividade para pessoas gordas?

Primeiramente, precisamos construir um olhar intencional para a gordofobia em todos os espaços, inclusive no ambiente corporativo

A gordofobia é uma opressão que age junto a outras opressões de gênero, raça e classe. É importante abrir a discussão sobre a gordofobia. Procurar ouvir as queixas das pessoas gordas.

Também é preciso procurar onde está nossa própria gordofobia. Isso só acontece a partir da abertura para discussão do tema.

“As pessoas gordas não têm espaços pra falar, elas não são validadas. É como se tivessem falando: Poxa você não consegue cuidar da sua saúde e da sua vida, você quer falar o que aqui? Infelizmente acontece esse olhar reducionista, então, quando a gente conseguir equiparar a pauta da gordofobia a essas outras pautas (raça, gênero e classe) dentro das empresas, vai ser o momento onde conseguiremos mudar algo.

Como fortalecer a busca por saúde e bem-estar sem reforçar discursos gordofóbicos?

Para Néli, a busca por saúde e bem-estar é algo que diz respeito a toda pessoa, todos querem viver se sentindo bem e estando saudável. Esse bem-estar e essa saúde não devem estar condicionados exclusivamente à gordura corporal e ao peso.

Existem múltiplos fatores que nos fazem ter uma vida saudável ou não. Quando falamos de pessoas gordas e como elas fazem para ter acesso a saúde, a gordofobia é um dificultador, porque alguns espaços de saúde acabam sendo espaços de opressão, é comum que aconteça um negligenciamento da escuta da pessoa e a culpabilização da pessoa.

Portanto, é essencial ouvir o paciente sem reduzir a saúde e bem-estar ao peso corporal e ao IMC. Ou seja, é preciso melhorar a questão da escuta do paciente, a investigação de seus sintomas para só então avaliar o estado de enfermidade ou não, mas o que vemos muitas vezes, (infelizmente), é a pressuposição de doença e a recomendação automática de tratamento x ou y somente por conta do peso do paciente. É como se pessoas gordas não tivessem direito básico à saúde, a menos que emagrecessem.

Os principais desafios que Néli enfrentou na luta do preconceito e desinformação sobre a gordofobia

Desde que comecei a pesquisar a gordofobia e estar trabalhando no ativismo contra a gordofobia, eu percebo que o tema não recebe a mesma relevância que outras temáticas. A gente não tem políticas públicas considerando o corpo gordo como um marcador social. Não temos espaços para discutir o corpo gordo de forma que não seja estigmatizadora… a tendência é que as pessoas confundam a luta contra a gordofobia como uma apologia à obesidade, o que absolutamente não existe. A gente está falando de combater a gordofobia para que todas as pessoas possam viver uma vida digna... Então, existe uma luta por um direito à saúde e qualidade de vida a todas as pessoas. Portanto, temos um caminho longo pela frente, para conseguir fazer ecoar essa voz do combate a gordofobia como uma causa que cuida justamente da saúde da pessoa e não o contrário.”

Uma mensagem para as pessoas gordas que enfrentam preconceito

“Eu já senti a gordofobia atravessar meu corpo muitas vezes, e sempre dói, como da primeira vez. Achei que estudar o tema me prepararia para lidar com isso, mas não aconteceu. Dizem que há alternativa além do emagrecimento: a aceitação corporal. Buscar sentir-se bem com o próprio corpo é importante, mas não há linha de chegada. Se meu corpo marca a gordofobia que sofro, tenho de lidar com ele para lidar com a gordofobia. A diferença é que hoje não o odeio; ele é meu parceiro na luta anti-gordofobia. Cuide-se, valorize seu corpo e sua saúde mental. Olhe para si com generosidade.”

Esse foi nosso texto em parceria com Néli Simioni. Se você tem interesse em conhecer mais o trabalho dela na luta contra a gordofobia, clica aqui!

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