Saúde Mental: os desafios de morar sozinho na quarentena
De acordo com os últimos dados divulgados pelo IBGE, de 2005 para 2015, a quantidade de pessoas que vivem sozinhas saltou de 10,4% da população para 14,6%, isso representava, na época, mais de 10,4 milhões de pessoas. Morar sozinho se tornou cada vez mais comum e até desejável na nossa sociedade. ¹
Em tempos de distanciamento social, no entanto, essa configuração social pode não ser tão confortável quanto era antes. O que é natural, já que a quarentena impacta a dinâmica e a rotina de todos os lares espalhados ao redor do mundo.
Hoje vamos nos concentrar especialmente nos desafios de morar sozinho em uma época tão delicada para todos. Você vai encontrar depoimentos reais e dicas de profissionais da saúde mental para lidar com a situação. Acompanhe:
Morar sozinho até pode ser bom, mas nunca foi fácil
O aumento da expectativa de vida em pessoas idosas e no número de divórcios é parte da explicação para o crescimento da população que mora sozinha. Mas ainda podemos citar vários outros exemplos: tem muita gente que criou os filhos sozinho(a) e esses já se casaram e saíram de casa. Tem os idosos que ficaram viúvos mas não optaram por morar com parentes, preferindo que a casa fique cheia somente nos fins de semana. ¹
Esse cenário é, em partes, bastante confortável: preserva-se a individualidade, a independência é maior, e os vínculos permanecem, mas num arranjo diferente do que seria manter uma convivência sob o mesmo teto. Obviamente essas vantagens são muito bem vindas, especialmente para àqueles que moram sozinhos por escolha própria.
A “parte boa”, no entanto, não significa que tudo sejam flores. Como quase tudo na vida, existe um preço a ser pago. Todo funcionamento da casa depende exclusivamente de você, não há para quem pedir uma ajudinha quando começa a chover e as roupas estão no varal. Se você não cozinhar, ninguém mais o fará. Aquele probleminha com vazamento não vai desaparecer. A geladeira não enche sozinha, e mesmo as tarefas que podem ser delegadas, precisam de alguém que as supervisione, e claro, pague por elas.
Se no dia a dia “convencional” esses desafios podem ser desagradáveis, em momentos de isolamento, eles ganham um peso ainda maior, já que até mesmo a ida ao mercado pode ser uma verdadeira saga. Sem falar em nos idosos e pessoas em grupo de risco, cuja exposição pode gerar ainda mais desconforto e ansiedade.
Morar sozinho: aspectos emocionais
Se até aqui falamos dos problemas práticos e logísticos, espere até adicionarmos à equação todo aspecto emocional envolvendo o tema. Se antes era relativamente simples suprir a necessidade de interação com passeios e programas com a família e os amigos, agora, o cenário exige dessas pessoas um outro tipo de comportamento. É o que comenta nossa primeira entrevistada, Chrystiane Gotardelo:
“O relacionamento com outras pessoas passou a ser praticamente pelas mídias sociais, eu sempre preferi uma conversa presencial, quase não os utilizava, porém me adaptei facilmente a essa realidade. Estou mais ativa nas redes fazendo mais publicações para ter mais interação, o que têm me ajudado a me sentir menos sozinha”
Ela também compartilhou conosco um pouco dos seus desafios em relação a esse novo contexto:
“Morar sozinha tem todos os benefícios de liberdade e autonomia, algumas vezes sentir-se so
zinha é normal, mas antes, isso era fácil de resolver. Eu tinha uma rotina estabelecida de trabalho e das atividades que eu gostava de fazer: frequentar a academia, fazer aula de dança e jogar vôlei. Sempre que surgia um convite dos amigos para um jantar, happy hour ou balada eu estava lá.
O maior desafio para mim é ficar sozinha por longos períodos sem poder escolher se eu quero ou não me relacionar de forma presencial com outras pessoas”
O estar só como um espaço de autoconhecimento
Embora para boa parte das pessoas a falta de interação possa realmente causar algum tipo de prejuízo, também encontramos o depoimento da Marisa Senna que relata estar se sentindo bem, mesmo privada de algumas atividades que fazia antes:
“é um pouco curioso, mas eu tenho me sentindo estranhamente confortável com a situação atual, do ponto de vista de não sair ou encontrar outras pessoas. As interações geralmente exigem muita energia e disposição, e confesso que como uma pessoa introvertida e talvez até um pouco antissocial, me sinto menos cobrada em estar presente em alguns ambientes. Sinto falta da minha mãe, mas como moramos em cidades diferentes já há 4 anos, acabei me acostumando com essa distância. Eu me sinto bem morando sozinha e isso não mudou nada
com a chegada da quarentena, a dificuldade maior é me adaptar ao trabalho remoto, mas é mais uma questão de lidar com o preparo das refeições mesmo, desligar a mente do trabalho e dormir em horários mais certinhos.”
Marisa também comenta um pouco sobre as reflexões que vem fazendo nesse período: “não sei como vou me sentir daqui um tempo, pois não sabemos como as coisas vão ficar, mas por enquanto, estou aproveitando esse espaço para estar mais em contato comigo mesma, observar as coisas que eu gosto de verdade, as que eu sinto falta, e àquelas que eu fazia mais por uma pressão social do que por estar verdadeiramente afim”.
Os desafios e preocupações de quem mora sozinho
Perguntamos às nossas entrevistadas quais as estratégias elas costumam usar para lidar melhor com as preocupações. E também se elas sentiram que essas questões foram agravadas nesse momento que estamos vivendo:
Marisa nos contou o seguinte:
“eu fico preocupada com a minha mãe, mas como ela está em isolamento total com a minha irmã, eu fico mais tranquila. Confesso que na última semana minha maior preocupação é se é ‘normal’ não sentir falta de ver outras pessoas, pois isso é uma coisa que parece bem ruim para quase todo mundo. Também estou me perguntando que tipo de vida eu estava levando para estar aliviada em estar ainda mais só. Parece que estou em crise existencial mesmo. Procuro me distrair quando vejo que estou pensando muito nisso, mas é difícil.”
Chrystiane também dividiu conosco algumas de suas preocupações:
“Meu maior medo é que alguma pessoa que eu amo contraia o vírus. Meus pais já são idosos e estão no grupo de risco. Também tenho sobrinhos que vão para casa do pai quinzenalmente e têm contato com outras pessoas e ambientes, essas coisas me geraram muita preocupação e tristeza, mas depois de pensar muito cheguei à conclusão de que a contaminação ou não deles não está sob meu controle e que alimentar esses sentimentos seriam prejudiciais pra mim, então mantenho o que está sob o meu controle, sair o menos possível para evitar contrair o vírus e propagá-lo.”
Para ela, a psicoterapia tem sido uma aliada muito importante na regulação emocional:
“Estar com a terapeuta em um ambiente seguro e acolhedor, em que se pode dizer tudo sem medo de nenhum julgamento moral é muito importante, porque ao falarmos sobre nossas ações conseguimos identificar os nossos sentimentos e os gatilhos que nos levaram a elas, para mim isso foi essencial”
Psicoterapia e regulação emocional para quem decidiu morar sozinho
O apoio terapêutico de um psicólogo é sempre uma iniciativa importante para cuidar da saúde mental. Como morar sozinho tem seus desafios, especialmente em uma época como essa, a terapia pode ser uma oportunidade de trabalhar o seu autoconhecimento e estabelecer estratégias para lidar com as questões emocionais. O depoimento de Chrystiane deixa isso bastante claro:
“Sempre fui cobrada para ser a filha ‘perfeita’ sabe? que fazia tudo que os pais querem sem reclamar ou contestar, suprimindo minhas vontades e sentimentos, mas após o início do tratamento me sinto mais livre. Também me conheço melhor, aprendi a identificar meus sentimentos e conviver com eles na maior parte do tempo. Hoje, consigo reconhecer que alguns dias são mais difíceis que outros, que eu não vou conseguir ser a melhor em tudo sempre. Também percebi que eu ser dona do meu próprio destino e viver da forma como eu acho adequada, me colocando como prioridade não é errado como sempre me falaram. Adquirir essa consciência e trabalhar a autoaceitação me traz um sentimento de amor próprio e de paz.”
Como vimos, cada pessoa tem uma experiência diferente, por isso, não existe uma única forma de olhar para a situação. Se você mora sozinho, o mais importante é prestar atenção aos seus sentimentos e pensamentos, e também no seu estado geral de bem estar.
Saúde mental na pandemia
Além dos prejuízos do ponto de vista das relações sociais, é importante lembrar que os impactos de uma pandemia como a que estamos vivendo, também traz uma série de dúvidas e inseguranças em outras áreas da vida. A economia e a incerteza sobre a garantia do sustento, é mais uma dessas preocupações.
Esses e outros fatores podem culminar ou agravar transtornos como a depressão e a ansiedade. Por isso, é muito importante pensarmos em estratégias para cuidar da nossa saúde mental nesse momento crítico.
Entrevistamos a Dra. Fabrícia Signorelli (CRM-SP 113405) e o Dr. Michel Haddad (CRM-SP 145096), ambos psiquiatras, para nos ajudar a compreender o que pode ser feito para nos manter mais equilibrados nesse momento tão delicado. Confira os pontos altos da entrevista:
Impacto social e gravidade da COVID-19
Não é primeira vez que a nossa sociedade enfrenta uma pandemia. Em 2016 tivemos uma pandemia de SARS, e MERS, mas se compararmos elas à SARS-2 (COVID-19) o impacto global na nossa rotina, e consequentemente no nosso bem-estar mental, especialmente no Brasil, foi muito menor. Nossos médicos entrevistados explicam o porquê:
“A Sars-COV e a Mers tiveram um impacto social em uma escala muito menor que a Covid-19. A Mers, apesar da alta taxa de letalidade, tinha potencial de transmissibilidade bem menor que as outras duas. Estima-se que 8000 pessoas tiveram a Sars, com 800 mortes, números bem menos expressivos que os do novo coronavírus (Sars-CoV-2). Portanto, também acreditamos que o potencial de transmissão do Sars-CoV deva ser menor que o do Sars-CoV-2, o coronavírus que estamos enfrentando atualmente.”
Impacto econômico x colapso no sistema de saúde
A preocupação com a economia e a ameaça de contágio têm gerado discussões que favorecem a ansiedade, sobre isso, os psiquiatras avaliam:
“O Brasil está enfrentando condutas ambivalentes. Alguns grupos priorizam a preocupação com o imp
acto do isolamento na economia do país. Por outro lado, o Ministério da Saúde e outros grupos de governantes seguem as orientações da Organização Mundial de Saúde. A OMS defende que as medidas de distanciamento são fundamentais para achatar a curva de contaminação pelo COVID-19 e com isso reduzir o número de óbitos em virtude do colapso no sistema de saúde, pois não existe como absorver toda a demanda de pacientes contaminados.
A pandemia é um risco real: o medo da contaminação, o medo da doença, o medo da morte. Mas, ao mesmo tempo a preocupação com o impacto na vida econômica e financeira. Muitos já estão sendo afetados em suas vidas socioeconômicas, o que também é uma realidade preocupante.”
Os médicos também complementam:
“Todos sabemos que não há como separar a economia da vida humana, porém é preciso que exista uma fala unificada, para não intensificar o medo, ansiedade e insegurança que já são intensos o suficiente em virtude do contexto atual. A população precisa saber que existe a possibilidade de buscar um ponto de equilíbrio e proteção à vida.”
Morar sozinho: isolamento social, depressão e ansiedade
Existe a crença de que um paciente com depressão precisa estar rodeado de pessoas para melhorar. Também existe o medo de que vá piorar se o indivíduo morar sozinho. Isso até pode acontecer, mas é importante não generalizar, pois não há uma regra.
A depressão não é uma tristeza que demanda esforços familiares ou mais contato social para animar o paciente. É um quadro emocional que precisa de tratamento especializado. O suporte de familiares e amigos também é importante, mas as cobranças e regras podem piorar a depressão. ²
Nossos entrevistados, Dra Fabrícia e Michel, explicam que as intervenções devem ser feitas com um olhar individualizado:
“A pandemia é uma realidade para todos, porém essa realidade NÃO é a mesma para todos. Esse é um ponto importante, pois nós psiquiatras e psicólogos antes de qualquer orientação precisamos saber “o que” e “para quem” estamos propondo adotar determinados comportamentos.”
Por isso, também é necessário que compreender que todo o contexto atual é delicado e que as pessoas que já lidavam com transtornos mentais antes da pandemia, podem estar mais vulneráveis em relação às consequências do isolamento social e dos outros impactos do enfrentamento ao novo coronavírus.
“Já estamos lidando com um grande impacto da Covid-19 nos pacientes com transtornos mentais, também estamos observando uma incidência crescente de novos casos e provavelmente teremos que lidar com os casos que virão no pós-pandemia.”
Morar sozinho: como cuidar da saúde mental
Conversando com os profissionais de saúde mental, uma coisa ficou bastante clara: o medo, a ansiedade e insegurança fazem parte do contexto, mas devemos vivenciar um dia de cada vez e não antecipar as possíveis consequências da pandemia.
Isso significa que – seja para quem optou por morar sozinho, seja para quem está passando a quarentena com a família – é preciso aceitar que é quase impossível encontrar respostas para todas as dificuldades. É importante entender que nesse momento muitas das situações estão fora do nosso controle. Viver sem ter o “controle da situação” é realmente uma tarefa muito difícil de pôr em prática. Os médicos comentam:
“Não devemos nos cobrar tanto com a rotina da casa, família, tarefas domésticas, exigências do trabalho remoto, escola dos filhos e resolver todas as pendências de estudo. Devemos evitar o acúmulo de tarefas e a autocobrança para manter o nível máximo de produtividade. Não se cobre sobre ter que encontrar ‘algo que ame fazer’ só porque todos dizem que é saudável. Faça o que der para ser feito e respeite suas limitações físicas e emocionais.”
Agora que entendemos um pouco melhor todos os desafios que estamos vivendo, é hora de discutir o que pode nos ajudar a regular nossas emoções e buscar passar por esse período da forma menos complicada possível. Por isso, reunimos várias dicas dos nossos entrevistados que podem nos ajudar. Veja:
Dicas para passar pela quarentena com mais saúde mental
- Faça pausas ao assistir, ler ou ouvir notícias, incluindo as mídias sociais. Também procure escolher quais fontes de informações você irá acompanhar. Já que ouvir sobre a pandemia repetidamente pode ser perturbador.
- Tenha cuidado com seu corpo, tente manter um padrão de rotina de sono e de atividades realizadas ao longo do dia. Procure fazer refeições saudáveis e bem equilibradas, exercite-se regularmente e evite consumo de bebidas alcoólicas e drogas.
- Arranje tempo para relaxar. Tente fazer algumas atividades que você goste e que sejam prazerosas.
- Mantenha-se conectado com outras pessoas, converse com àquelas em quem você confia sobre suas preocupações e como está se sentindo. Mas lembre-se também de conversar sobre outros assuntos.
- Reduza o estresse em você e nos outros. Se você sentir que seu nível de estresse e ansiedade estão atrapalhando suas atividades de vida diária por vários dias seguidos, procure um psicólogo ou psiquiatra para uma avaliação.
- Compartilhar os fatos sobre o COVID-19 e entender o risco real para você e as pessoas de quem você gosta pode tornar esse momento de pandemia menos estressante. Isso irá ajudar a reduzir os mitos sobre o problema. Ao compartilhar informações precisas sobre o COVID-19, você pode ajudar as pessoas a se sentirem menos estressadas e permitir que você se conecte com elas.
Para finalizar, queremos deixar uma frase da nossa entrevistada Chrystiane Gotardelo que nos pareceu bastante acolhedora para esse momento:
Alguns dias serão mais difíceis, mas está tudo bem, na nossa vida não somos felizes o tempo todo, por que em tempos de isolamento deveríamos ser?
Colaboraram com esse artigo:
Dra. Fabrícia Signorelli Galeti
Psiquiatra – CRM 113405-SP
Dr. Michel Haddad
Psiquiatra – CRM 145096-SP
Referências Bibliográficas e datas de acesso
1 – Exame – acesso em 18/04/2020
2 – Cuidados pela Vida – acesso em 28/04/2020